Olá, pessoal!
Este artigo será divulgado em duas versões ligeiramente diferentes nos portais e nas revistas da Abring, em Brasília, e da Câmara da Indústria e Comércio Brasil-Alemanha, em SP.
O GOVERNO BOLSONARO E O CONGRESSO NACIONAL: FIM DO PRESIDENCIALISMO DE
COALIZÃO?
Paulo Kramer ( * )
Jair Bolsonaro chegou à Presidência
da República na crista de gigantesca onda de indignação popular contra um
establishment político amplamente percebido como corrupto e estranho aos
interesses dos cidadãos comuns, percepção reforçada pelas chocantes revelações
da Operação Lava-jato. Ele interpretou e continua interpretando sua vitória nas
urnas de 2018, durante eleição agudamente polarizada, como um claro mandato
para abandonar o modelo de relacionamento Executivo-Legislativo conhecido como
presidencialismo de coalizão, um toma-lá-dá-cá institucionalizado que se traduz
na distribuição de nacos do orçamento público, cargos ministeriais aos
parlamentares situacionistas e outras posições-chave nas administrações direta
e indireta aos afilhados desses políticos, em troca do apoio congressual à
agenda de proposições do governo. Na verdade, essa barganha constituiuse em
chave da governabilidade nos dois períodos democráticos da nossa história
republicana desde o fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas
(1937-1945): o primeiro, de 1946 a 1964, interrompido por 21 anos de regime
militar (1964-1985), e o segundo, que, começando com o governo de transição de
José Sarney (1985-1990), se prolonga até hoje, a partir da
reconstitucionalização do País (1988). Cabe observar que essa transação de
verbas e cargos públicos em contrapartida pelo apoio legislativo à gestão do
Executivo segue pautando a política na grande maioria, quase totalidade, dos
estados e municípios. O presidente se sente 'empoderado' pelo sentimento de
amplas parcelas da opinião pública para substituir um presidencialismo de
coalizão que, com o passar do tempo, degenerou em presidencialismo de cooptação
e, afinal, de pura e simples corrupção, por um apelo direto às massas a fim de
que estas exerçam pressão sobre a classe política e o baronato burocrático –
via redes digitais e manifestações de rua – em prol das propostas
governamentais. Um formato de liderança política que o sábio alemão Max Weber
(1864-1920) rotulou de "carisma democrático plebiscitário", ou
"cesarismo democrático". O custo dessa opção é a imprevisibilidade:
em vez de contar com uma base estável de apoio parlamentar chancelada pelos
líderes dos partidos governistas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o
Executivo precisa negociar esse respaldo caso a caso, com um caleidoscópio de
bancadas temáticas, representativas dos grupos de interesses e correntes de
opinião aliados do bolsonarismo, mas nem sempre convergentes entre si
(evangélicos, agropecuaristas, operadores da segurança pública etc). O novo
caminho já registra alguns acidentes de percurso. Antes do recesso parlamentar
de meados de julho último, cinco das 20 medidas provisórias editadas pelo
Planalto desde a posse de Bolsonaro haviam caducado por decurso de prazo.
Provavelmente por isso, como sugere a leitura cuidadosa de recentes edições do
Diário Oficial da União, a articulação política do governo tenha voltado a
apelar, em doses homeopáticas, para a velha fórmula retribuindo a fidelidade de
grupos de congressistas com nomeações para cargos em escalões inferiores, como
superintendências regionais de autarquias federais. A despeito desses
percalços, ao menos por enquanto, a reforma da Previdência Social (Proposta de
Emenda à Constituição-PEC nº 6/2019), primeiríssimo item da agenda econômica do
governo, segue seu curso no Congresso Nacional, já aprovada pela Câmara no dia
7 de agosto e prestes a receber o sinal verde também do Senado. Sua
promulgação, prevista par outubro próximo, vai representar uma economia de
aproximadamente R$ 900 bi para os cofres da União nos próximos 10 anos. Esse
encaminhamento positivo refletirá, em grande medida o lento, mas constante,
amadurecimento da sociedade brasileira quanto à urgente necessidade de um
Brasil que envelhece em ritmo acelerado reformar o seu sistema de
aposentadorias e pensões, quer para os trabalhadores na iniciativa privada,
quer, principalmente, para os funcionários públicos, sob o risco de um iminente
colapso fiscal. No primeiro turno de votação da Nova Previdência, 379 deputados
votaram a favor da reforma (131 contra); no segundo turno, 370 deputados a
aprovaram, e 124 a rejeitaram. E, com a finalidade de ampliar aquela economia
fiscal, sem que, no entanto, seja necessário submeter, novamente, aos deputados
o texto que eles já votaram, o relator da reforma no Senado, Tasso Jereissati (PSDB/CE),
está apresentando uma proposta "paralela' que inclui os sistemas
previdenciários dos governos estaduais e municipais, ainda que as chances de
essa extensão ser aprovada pela Câmara pareçam bem limitadas. Tanto a reforma
da Previdência quanto a reforma tributária, que já começou a tramitar nas duas
Casas do Congresso, são condições que a equipe econômica do governo, comandada
pelo ministro Paulo Guedes, julga absolutamente indispensáveis a assegurar os
investidores da seriedade de sua estratégia pró-mercado no resgate da economia
brasileira da mais profunda e prolongada crise de sua história. Indispensáveis,
mas insuficientes, pois necessitam ser complementadas por um conjunto de
reformas microeconômicas que coloquem o País, de uma vez por todas, na rota do
desenvolvimento sustentado e inclusivo. Por exemplo: alterações no arcabouço
regulatório que garantam segurança jurídica para investimentos privados com
longo prazo de maturação são essenciais para o pleno êxito do Programa de
Parcerias de Investimentos. O PPI já conta com 106 grandes projetos de
infraestrutura em carteira (ferrovias, rodovias, hidrovias, leilões de campos
de petróleo e gás etc), e a expectativa é que essas concessões e privatizações
atraiam capitais privados da ordem de até R$ 1,6 trilhão em uma década. O
panorama internacional também inspira preocupação. O agravamento da situação
fiscal e cambial da Argentina, quarto maior destino das exportações
brasileiras, atrás de China, Estados Unidos e União Europeia, foi o principal
fator da queda de 1,6% das exportações brasileiras no segundo trimestre do
corrente ano, em comparação com o primeiro. E o risco de uma recessão global em
consequência da escalada de retaliações comerciais entre norte-americanos e
chineses tem aumentado. Como se isso fora pouco, o presidente brasileiro,
movido por sua costumeira pugnacidade, vem de alimentar bate-boca com seu
colega francês, amplificando desnecessariamente o ruído provocado pelas
declarações bombásticas de um Emmanuel Macron com índices de popularidade em
queda livre e ansioso pelo apoio do lobby agrícola protecionista de seu país,
explorando as imagens das queimadas amazônicas como pretexto para melar os
trâmites do acordo comercial entre o Mercosul e a UE, sem dúvida um gol de
placa da política externa do governo Bolsonaro. Seja como for, querelas
envolvendo o meio ambiente mobilizam sensibilidades políticas e culturais cada
vez mais fortes em países importadores de commodities, especialmente na Europa,
o que pode resultar em sanções governamentais ou boicotes da sociedade civil,
ambos prejudiciais ao agronegócio brasileiro. Com tanta coisa em jogo, é
natural que empresários e financistas brasileiros e estrangeiros se preocupem
com os possíveis efeitos desestabilizadores do aguerrido temperamento presidencial
sobre o diálogo Executivo-Legislativo e os rumos da política em geral. Recentes
pesquisas de opinião – Datafolha, Ibope, XP/Ipespe, CNT/MDA – apontam uma
crescente desaprovação do público ao estilo de Bolsonaro governar e se
comunicar. Esses números agora convergem para uma base de apoio popular
dimensionada em cerca de 30% do eleitorado (bolsonaristas fieis). De outra
parte, conforme dados do Atlas Político de agosto, Jair Bolsonaro ainda exibe a
'maior minoria' (42,9%) em confronto com os índices de outros vultos da
atualidade nacional: Paulo Guedes (41,9%); Lula (34,0%); Fernando Haddad
(26,8%); Ciro Gomes (24,7%); João Dória (18,5%) e Rodrigo Maia (12,1%). A única
exceção é o ministro da Justiça e ícone da Lava-Jato, Sérgio Moro, que com 51,7%
de aprovação, segundo a mesma fonte, continua sendo o agente político mais
admirado do Brasil. Na minha opinião, apesar do referido desgaste, o nível de
aprovação de Bolsonaro ainda o mantém em condições de se beneficiar de uma
melhora da economia. Quero concluir com uma resposta tentativa, provisória,
enfim, desprovida da mínima pretensão ao fechamento da questão que me motivou a
escrever o presente artigo. Conquanto eu reconheça que a decisão tomada por
Bolsonaro de abandonar o toma-lá-dá-cá institucionalizado do presidencialismo
de coalizão e optar por alianças parlamentares ad hoc em apoio à agenda
legislativa do seu governo, pode dificultar/retardar o avanço dessas propostas,
observo, ao mesmo tempo, que isso não necessariamente bloqueia o caminho para as
reformas, sobretudo quando a classe política percebe que sua oposição à agenda
do Executivo desagrada a parcelas significativas do eleitorado e embute a
ameaça de punição em pleitos vindouros. É precisamente isso que está
impulsionando a reforma da Previdência: a maioria dos parlamentares considera
que, se não aprová-la, será responsabilizada pelos eleitores pelo prolongamento
da crise econômica. Essa conclusão encontra respaldo na literatura de Ciência
Política que analisa o fenômeno dos "governos de minoria", situação
de quase um terço dos gabinetes formados nas democracias europeias do pós Segunda Guerra Mundial. (Veja-se, por exemplo, a obra capital do politólogo
norueguês Kaare Strom, professor da Universidade da Califórnia, San Diego,
Minority government and majority rule, Cambridge University Press, 1990; ou,
também, a coletânea organizada por Strom e Wolfgang C. Müller, Policy, office,
or votes? How political parties in Western Europe make hard decisions,
Cambridge, 1999. )
__________________________________________________________________________________ ( * ) Professor aposentado de Ciência Política da
Universidade de Brasília (UnB), hoje atuando na capital federal como consultor,
analista de risco político e assessor parlamentar de empresas e entidades
associativas.