Com a realização das convenções partidárias; o registro das chapas de presidentes e vices no Tribunal Superior Eleitoral (TSE); a oficialização dos planos e propostas de governo; o início das campanhas nas ruas e na imprensa; e, a partir de 31 de agosto, na televisão e no rádio, finalmente foi dada a largada ao mais volátil, pulverizado e imprevisível pleito presidencial desde 1989.
Para ajudar os nossos internautas a compreender a singularidade desta conjuntura política, entrevistamos o cientista político e consultor da Fundação Ivete Vargas Paulo Kramer, docente aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e analista de risco político.
Na sua opinião, o que singulariza esta eleição presidencial em relação às anteriores?
– Para começo de conversa, em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, o país se acostumou à bipolarização PT X PSDB. Em 2018, pode até ser que ela se repita no segundo turno – dado o grande número de candidaturas competitivas, dificilmente a disputa será decidida logo no primeiro –, mas considero isso menos provável. Há dois anos, na época do impeachment de Dilma Rousseff, havia uma suposição quase unânime de que os tucanos seriam os grandes beneficiários da derrocada do governo lulopetista, mas as investigações sobre o envolvimento do senador Aécio Neves em esquema de corrupção de Furnas e a divulgação de conversa gravada em que o senador Aécio Neves, derrotado por uma estreita margem em 2014, pedia R$ 2 milhões ao megaempresário Joesley Batista para pagar advogados, alienaram parcela significativa da opinião pública até então favorável à volta do PSDB ao poder.
Procurando responder objetivamente à sua pergunta, a conjunção de um megaescândalo de corrupção com a pior recessão da história econômica da história brasileira diferenciam o pleito deste ano de todos os anteriores. A conjuntura é tão, digamos, singular e volátil que os dois nomes que lideram as pesquisas de intenção de votos são, de um lado, um ex-presidente populista de esquerda cumprindo pena de prisão de mais de 12 anos, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro e, de outro, um obscuro e veterano deputado de direita, capitão para-quedista da reserva do Exército, sem respaldo nas máquinas políticas tradicionais, porém imensamente popular nas redes digitais.
A seu modo e a despeito das abismais diferenças que os separam, Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro são a mais completa tradução da perplexidade do eleitorado e também da demanda difusa por messianismo que reemerge na sociedade brasileira em momentos de profunda crise, como este.
Então, você considera que a Lava Jato e outras operações em curso impactam profundamente o estado de espírito do eleitorado…
– Sem dúvida alguma! Como gostava de proclamar um famoso ex-presidente agora hóspede da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, “nunca antes na história do Brasil” esteve o povo, em seu conjunto, tão bombardeado com revelações minuciosas de múltiplas e graves ilicitudes cometidas por seus representantes eleitos, empresários ‘amigos do rei’ e altos burocratas. Números recentemente divulgados pelo Ministério Público Federal servem para dimensionar isso melhor. Desde as fases iniciais da Lava Jato até julho último, foram abertos 1.765 processos, emitidos 962 mandados de busca e apreensão, 115 ordens de prisão preventiva, 121 de prisão temporária, seis de prisão em flagrante e 78 acusações criminais contra 305 pessoas. Já foram pronunciadas, também, 43 condenações por corrupção, crimes contra o sistema financeiro internacional, organização criminosa, lavagem de ativos e até tráfico de drogas. Duzentas e quatro condenações contra 134 pessoas somam 1983 anos, quatro meses e 20 dias de prisão.
As denúncias até agora envolvem 6,4 bilhões de reais em propinas, e os ativosbloqueados já chegam a 3,2 bilhões. Considero que, por mais chocantes que seafigurem, esses números têm um aspecto muito positivo, pois mostram que instituições como Justiça Federal, Ministério Público, Polícia Federal, tribunais de contas etc estão funcionando, cumprindo sua missão de fiscalizar e punir.
O grande problema reside nas instituições proativas, dos poderes Executivo e Legislativo, deslegitimadas, paralisadas ou funcionando com dificuldade ante o descrédito generalizado.
E quanto à crise econômica?
– Entre 2014 e 2016, a atividade econômica geral sofreu uma contração seriíssima: 0,5%, menos 3,5% e, outra vez, menos 3,5% do PIB, respectivamente. A recuperação de 1% verificada em 2017 foi insuficiente para dar uma sensação de alívio.
Afinal, o desemprego ainda não parou de avançar: 6,8% (2014); 8,5% (2015), 11,5% (2016); 12,7% (2017) e 13,7% da população economicamente ativa (PEA) até março deste ano, o equivalente a mais de 13 milhões de trabalhadores ‘oficialmente’ desempregados. Os números do IBGE divulgados agora em agosto, relativos ao segundo trimestre de 2018, não são exatamente animadores: apesar da ligeira queda do desemprego (13,1% para 12,9% da PEA), a chamada taxa de desalento aumentou para 4,4%; trocando em miúdos, mais de 4,8 milhões de pessoas simplesmente deixaram de procurar emprego, pois perderam a esperança de encontrar uma vaga. E 23% dos desempregados são chefes de família! Somados desempregados, desalentados, subempregados (por subocupação e insuficiência de horas), hoje no Brasil falta trabalho para 27,64 milhões de pessoas!
Depois de um começo que parecia promissor, a recuperação econômica sob o governo Michel Temer resultou truncada. Avanços iniciais como a promulgação da Emenda Constitucional n° 95/2016 (teto dos gastos federais, que só poderão ser corrigidos pela inflação do exercício anterior) e a reforma trabalhista (redução da intervenção da Justiça do Trabalho nas negociações entre patrões e empregados, fim do imposto sindical obrigatório, regras mais flexíveis para novas relações laborais resultantes do desenvolvimento tecnológico, a exemplo do teletrabalho e dos contratos intermitentes, porém mantidos todos os direitos dos trabalhadores inscritos na Constituição Federal, tais como férias remuneradas, 13° salário, licenças maternidade e paternidade, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, seguir desemprego e assim por diante) foram interrompidos desde maio de 2017, quando o presidente viu-se obrigado a redirecionar o foco das suas articulações com o Congresso e gastar capital político para cuidar de sua sobrevivência no cargo, defendendo-se de denúncias formuladas pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Exatamente um ano depois, em maio último, veio a greve nacional dos caminhoneiros que paralisou o país por vários dias e provocando uma queda de 3,34% na projeção do PIB para aquele mês. Resultado, agora em junho a rejeição ao presidente bateu um novo recorde: 82%, segundo o Datafolha! Mesmo assim, não dá para esquecer que, graças à credibilidade da equipe econômica comandada até pouco tempo atrás pelo ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, a taxa básica de juros (Selic) caiu de 14,25%, em 2015, para 6,5%, em março deste ano. A inflação também sofreu redução significativa: 10,67% (2015), 6,29% (2016) e 2,95 (2017).
O descontrole histórico das contas públicas é o grande vilão: turbinados pela Constituição de 1988, os gastos federais em relação ao PIB saltaram de 10,8% para 19,5% no ano passado. O déficit da previdência chegou a R$ 182, 4 bilhões em 2017, no chamado Regime Geral do INSS (trabalhadores do setor privado), com cerca de 35 milhões de segurados, um aumento de 21,8% em relação a 2016. Proporcionalmente, a situação e as perspectivas dos ;regimes próprios; (funcionalismo público) são ainda mais alarmantes: somente no caso dos servidores federais (1 milhão de segurados, civis e militares), o rombo em 2017 foi de R$ 86,3 bilhões, 11,9% a mais que no ano anterior. À medida que Temer perdia força no parlamento, as chances da reforma previdenciária
– uma mudança, insisto, absolutamente indispensável e urgente – evaporaram.
Além do já referido desemprego de mais de 13%, as projeções econômicas para este ano eleitoral são as seguintes: crescimento do PIB de 1,5%; inflação de 4,1% e – atenção!
–87,3% na relação dívida pública/PIB, uma proporção insustentável no caso de países emergentes.
E como esse eleitor vai reagir em face do duplo choque ético-político e econômico?
– Acredito que, sobretudo, com muita raiva. E com muita alienação, também, uma alienação que se reflete na escalada do chamado não voto (nulos, brancos e abstenções): 25,6% dos sufrágios em 2006; 26,76% em 2010; e 29,03% em 2014. Em 2018, as projeções dos institutos de pesquisas para esse não voto oscilam em torno de um terço do eleitorado, com outros 10%, ou mais, admitindo não saber em quem irão votar.
Tivemos duas recentes ;prévias; do que pode vir por aí, com as eleições suplementares para os governos do Amazonas no ano passado e no Tocantins em junho último.
No primeiro caso, o não voto bateu em 36,32%; no segundo, impressionantes 51,83%. É bem verdade que eleições ;solteiras; como essas duas tendem a exacerbar a tendência. Mesmo assim, acredito que podemos prever uma avalanche de brancos, nulos e abstenções. O eleitorado, repito, está raivoso e descrente na sua avaliação da classe política, dos partidos e, o que é pior, da atividade política em si.
A seu ver, como isso impacta as perspectivas de renovação, admitindo que, se o eleitor está com tanta raiva dos mandatários atuais, provavelmente vai querer derrotá-los e substitui-los por caras novas?
– Vejo nisso um paradoxo, ou aparente paradoxo. A avalanche do não voto acabará frustrando as expectativas de renovação. Desde a redemocratização, a taxa de rodízio nas cadeiras do Congresso são relativamente altas: 40%, em média, a cada quadriênio, na Câmara dos Deputados, uma taxa consideravelmente mais elevada que a da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, onde o turnover raramente ultrapassa um dígito, à exceção das épocas em que toda uma geração de políticos mais idosos resolve se aposentar ao mesmo tempo. Aqui, apesar do alto turnover, o perfil dos substituídos é extremamente semelhante ao daqueles que os substituem; não raro, o ocupante resolve se retirar ou concorrer a outro cargo, legando ; sua cadeira a parentes ou a aliados próximos do seu clã. Agora mesmo, a Folha de S. Paulo publicou levantamento segundo o qual mais de 60 candidatos das principais “dinastias políticas” concorreram a estas eleições gerais.
Penso que esse fenômeno vai se exacerbar em 2018, em razão das restrições ao financiamento de campanhas. Em 2015, decerto reagindo aos descalabros revelados pela Lava Jato e outras operações, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as contribuições financeiras de pessoas jurídicas (empresas). Desde então, as únicas doações privadas que a legislação admite são de pessoas físicas, limitadas a um pequeno percentual da renda tributada do doador.
Ora, como essa cultura de pequenas contribuições dos cidadãos não existe no Brasil e tão cedo não deverá ; vingar, até mesmo em função do clima reinante de repúdio aos políticos e à política, o financiamento das campanhas, agora e durante muito tempo, vai depender quase exclusivamente de recursos públicos, dinheiro do tradicional Fundo Partidário (R$ 757.140.712) e do novo Fundo Eleitoral (R$ 1.716.209.431). Ora, a legislação em vigor, dentro de limites genéricos, confere substancial latitude aos dirigentes e à burocracia das máquinas partidárias na alocação dessas quantias entre candidatos aos mesmos cargos.
A tendência é confirmar-se a famosa lei ; farinha pouca, meu pirão primeiro. Essa mesma tendência é ainda reforçada pelo encurtamento do tempo de campanha na TV (agora 35 dias contra 45 nos pleitos anteriores).
Para resumir, tudo parece favorecer aos candidatos de estimação das burocracias partidárias, das religiões organizadas e das corporações em geral.
Mas vamos ao que interessa, professor: quem vai ser o próximo (ou a próxima) presidente?
– (Risos) Desde junho de 2013, quando amplas manifestações nas ruas de todo o país, reivindicando punição para os corruptos, fim do desperdício de dinheiro do contribuinte e serviços públicos padrão-Fifa, derrubaram Dilma do confortável patamar de popularidade registrado por todas as pesquisas até a sua destituição, por impeachment, três anos depois, brinco dizendo que a bola de cristal da análise política prospectiva embaçou de vez.
E, agora, acabou de rachar!… Eu diria que os resultados das pesquisas, que vinham se mantendo estáveis nos dois ou três últimos semestres, passarão a sofrer maiores flutuações com a abertura da temporada de entrevistas e debates e também, obviamente, com o começo das campanhas — primeiro na rua e na imprensa e, como já foi dito aqui, na TV e no rádio, a partir de 31 de agosto, até 4 de outubro, três dias antes do primeiro turno, marcado para o dia 7.
Na média dos prognósticos de intenção de voto dos principais institutos, obtidos em julho, portanto já passado o efeito-Copa do Mundo, Lula da Silva, do PT, lidera, com 31%, seguido de Jair Bolsonaro (PSL, 22%),
Marina Silva (Rede, 8%), Geraldo Alckmin PSDB, 7%), Ciro Gomes (PDT, 6%), Álvaro Dias (Podemos, 4%) e Henrique Meirelles (MDB, 1%).
Quando o questionário exclui Lula, colocando em seu lugar o companheiro de chapa e mais que provável substituto Fernando Haddad, Bolsonaro sobe para 24%; Marina, para 13%; Ciro, para 10%; Alckmin, para 9%; Álvaro, para 5%; e Meirelles permanece com 1%. Haddad fica com 4%, mas já vi pesquisas que lhe dão até 15% quando o entrevistado é informado de que o ex-prefeito paulistano será o candidato de Lula. E, de acordo com uma sondagem Datafolha de 24 de junho último, o não voto vai a 33%, caindo para 22% com a inclusão do nome de Lula.
Os cenários para o segundo turno variam de instituto para instituto. Em junho passado, o Datafolha calculou que, favorito num primeiro turno sem Lula, o Bolsonaro perderia para quase todos os adversários no segundo, ganhando do Alckmin por empate técnico e derrotando o Haddad ‘de lavada’. Interessante que, no mês seguinte, o instituto DataPoder360 publicou pesquisa mostrando que o Bolsonaro, também na ausência do Lula, ganharia em todos os cenários de segundo turno: 36% a 26% contra o Ciro; 36% a 31% contra a Marina; 36% a 23% contra o Haddad; e 35% a 25% contra o Alckmin.
A que poderíamos atribuir essa divergência entre os institutos?
– Bem, o DataPoder360 usa uma técnica de coleta relativamente nova no Brasil, embora de ampla utilização há muito tempo nos Estados Unidos e em outros países: entrevistas telefônicas.
Isso é interessante, pois metaestudos científicos — avaliações comparativas de várias pesquisas — já demonstraram que, pelo telefone, sem encarar o entrevistador, a tendência de muitos informantes é ficarem mais à vontade para revelar o que pensam e o que sentem. Faz sentido: apesar de sua ampla popularidade, inclusive nos segmentos de jovens de classe média com nível superior etc, o ex-capitão, por suas declarações desabridas, pelo seu jeito estouvado, às vezes até mesmo truculento, é claramente alvo das antipatias de estamentos já acostumados a considerar-se os árbitros da opinião pública, como jornalistas e acadêmicos.
É só lembrar o ‘susto’ que esse pessoal, lá na América, levou com a vitória do Donald Trump, em 2016…. Outro achado importante do mesmo instituto: eleitores do Jair Bolsonaro têm o voto mais consolidado, isto é, afirmam que não mudarão de opinião até a eleição — 79% contra os 46% dos eleitores de Marina Silva; 49% de Álvaro Dias; 56% de Geraldo Alckmin; e 61% de Fernando Haddad.
Agora, mudando um pouco de ângulo, quero insistir no seguinte ponto, independentemente de qual venha a ser o tal veredito das urnas: aprendemos desde a infância que tempo é dinheiro; pois bem, tempo, dinheiro e internet serão os três recursos políticos-chave neste pleito presidencial.
Poderia explicar melhor?
– Tempo na TV — não podemos esquecer o rádio! — e dinheiro para as campanhas (fundos eleitoral e partidário) variam na razão direta do tamanho das coligações, mais precisamente do número de parlamentares dos partidos políticos que as constituem.
Por exemplo, a candidatura do Alckmin (PSDB), apoiada por PP, DEM, PRB, PTB, PR,PSD, PPS e Solidariedade, ficará com 48% do tempo de propaganda televisiva (6minutos e 3 segundos diários), e as nove siglas da sua coligação, entre fundo partidário e fundo eleitoral, somam quase R$ 1 bilhão. O MDB, de Meirelles, com cerca de R$ 281 milhões, vai ter 13% do tempo de televisão (1 minuto e 38 segundos); o PT, de Lula/Haddad, R$ 270,6 milhões e 2 minutos e 7 segundos (17%), respectivamente. Em contraste com essas legendas e alianças maiores, os outros candidatos competitivos terão muito menos dinheiro e tempo de exposição na TV: Ciro (33 segundos; e aproximadamente R$ 93,5 milhões, na soma dos fundos do PDT com os do Avante), Álvaro (também com 33 segundos; e cerca de R$ 104,4, com os fundos de Podemos +PSC + PTC + PRP), Marina (16 segundos; e quase R$ 47,2 milhões de Rede + PV).
E, na, lanterna’ do tempo e do dinheiro, o fenômeno Bolsonaro, com apenas 9 segundos de TV e R$ 19,2 milhões (fundos PSL + PRTB). Uma inovação importante da propaganda televisiva dos presidenciáveis são as chamadas inserções (spots de 15 ou 30 segundos), que vão ao ar fora dos ‘blocos’ verspertino e noturno, com 12 minutos e meio cada, apresentados às terças, quintas e também aos sábados.
Distribuídas pela programação ‘normal’ ao longo do dia, elas pegam o telespectador ‘de surpresa’, por assim dizer. O número dessas inserções, mais uma vez, é proporcional ao tamanho parlamentar das legendas em cada coligação: 12 spots diários para o Alckmin; cinco para o candidato do PT (Lula ou Haddad); quatro para o Meirelles; três a cada dois dias para o Ciro; outro tanto para o Álvaro; dois spots a cada três dias para a Marina; e um a cada três dias para o Bolsonaro. As demais candidaturas terão direito a uma inserção a cada três ou cinco dias.
Vale recordar que, de acordo com estudo recentemente divulgado pelo Ipespe, sob encomenda da XP Investimentos, a TV ainda é apontada como principal fonte de informações e esclarecimentos sobre a eleição por 35% dos entrevistados.
E a internet (redes sociais), professor?
– Segundo essa mesma pesquisa, a internet, sobretudo as redes, são a principal fonte para a decisão de voto de 20% dos informantes, seguida de 10% que afirmam tomar essa decisão com base em conversas com familiares e amigos. Jornais e rádio foram apontados por 2% cada um. Na prática, muitos eleitores se definem baseados num mix dessas fontes.
Veja só: outro estudo, este do Ibope, informa que 97% dos domicílios brasileiros possuem televisão, sendo que 53% dos entrevistados afirmam confiar na TV para se manter informados. No tocante à TV por assinatura, seu alcance médio abrange 51% dos telespectadores (17,2 milhões de pessoas). À população conectada à internet corresponde a 67% do total, com 120,7 milhões de usuários, e 42,1 milhões têm acesso à banda larga.
A classe A tem 96% de domicílios conectados; a classe B, 89%; a classe C, 74%; as classes D/E, 42%. Somos ao todo 208 milhões de habitantes, mas o número de linhas de internet móvel (celulares) já chegou a 240 milhões. O Facebook tem 102 milhões de usuários; o WhatsApp, 100 milhões; o Instagram, 35 milhões; e o Twitter, 33 milhões. Mesmo assim, ainda existem no Brasil 27 milhões de residências desconectadas da rede mundial de computadores. Todos os presidenciáveis com tempo de TV mais longo procurarão conquistar a maior fatia possível de votos desses eleitores sem internet.
Está claro que aquelas candidaturas competitivas que dispõem, comparativamente, de escassos recursos, estruturas pequenas e pouco tempo na televisão, procuram compensar essas deficiências com a intensificação da sua presença nas redes: Bolsonaro tem 8,1 milhões de seguidores; Marina tem 4,3 milhões; Alckmin fica bem atrás, com 2,1 milhões; Álvaro, 1,5 milhão; Ciro, 652 mil; e Meirelles, 263 mil.
A ‘pegada digital’ de cada candidatura varia conforme a capacidade de produzir engajamentos, ou seja, com a maior ou menor disposição de seus seguidores para interagir em apoio aos respectivos presidenciáveis, defendendo-os ou atacando/contra-atacando os adversários no ciberespaço, na blogosfera etc.
Uma das minhas maiores curiosidades nesta eleição, já tão ‘curiosa’ sob vários aspectos, é o peso político específico daquelas três dimensões-chave (tempo, dinheiro/estrutura e internet) nos resultados saídos das urnas de outubro. Creio que, de antemão, ninguém é capaz de estimar isso com segurança.
Pelo menos dá para prever se Lula concorrerá, ou não?
– Olha só, estou cada vez mais convicto de que a opção preferencial do lulopetismo pelo confronto com a Justiça, requerendo ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a candidatura de um presidiário condenado em segunda instância, portanto inelegível com base na lei da ficha limpa, revela a estratégia de manter as chamadas bases unidas e garantir a hegemonia do PT nos arraiais da esquerda.
Reafirmo aqui o que tenho assinalado em vários artigos e anteriores entrevistas: a prioridade número um do Lula e da cúpula partidária é a sobrevivência política e organizacional da legenda.
Eles buscam reverter ou, no mínimo, atenuar o processo de encolhimento iniciado há dois anos, quando, no rastro do impeachment, o PT perdeu cerca de 60% das prefeituras que havia conquistado em 2012 — redução de 644 para 261 municípios, entre as quais a joiaabsoluta de todas as coroas, a capital paulista, terceiro maior orçamento público do país.
Com as prefeituras, o PT perdeu também 50 mil cargos de confiança, fonte do dízimo companheiro, muito importante para as finanças partidárias, ainda mais agora que o partido está afastado dos cofres das empresas estatais e dos bancos públicos federais.
Ora, a confirmar-se a ‘escrita’ segundo a qual eleições municipais armam o palanque para as eleições gerais, dois anos depois, é bem provável que o PT venha a experimentar agora uma drástica lipoaspiração nas suas bancadas do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas, para não falar nos governos estaduais.
Se o interesse primordial do lulopetismo fosse mesmo a vitória na eleição presidencial deste ano, a alternativa aparentemente mais razoável para um Lula já quase desenganado de suas chances de manter a candidatura perante o Judiciário seria ungir
Ciro Gomes o seu delfim. Afinal, o ex-governador do Ceará despontou nas pesquisas dos dois últimos semestres como a segunda opção dos eleitores do PT, com boa probabilidade, portanto, de não só conservar o mais possível intacto o latifúndio eleitoral da esquerda na Região Nordeste (39.222.155 votantes, segundo maior eleitorado do Brasil, 26,62% de todos os votos), mas também quem sabe até recuperar uma parcela do voto centrista e centro-direitista que, com Lula, o PT tinha conquistado no começo deste século, mas acabaria perdendo sob o impacto do Mensalão e da Lava Jato, na voragem da indignação das classes médias, em face das lambanças fiscais, políticas e morais cometidas no governo Dilma, ou reveladas durante ele.
Como ficou demonstrado pelas manobras que Lula comandou diretamente da cadeia com a finalidade de isolar a candidatura do Ciro, o PT até aceita o risco de perder a eleição, mas não o de fomentar o surgimento de uma liderança esquerdista alternativa ao seu guia único.
Certamente, o PT ainda pode acalentar a expectativa de chegar ao segundo turno com Fernando Haddad. Agora mesmo, veio a público mais uma sondagem Ipespe/XP Investimentos em que Haddad, com apoio de Lula, conquistaria 15% dos votos válidos no primeiro turno, empatando tecnicamente com Bolsonaro (21%), de vez que a margem de erro é de 3,2%, para mais ou para menos.
Daí os contorcionismos da defesa de Lula no sentido de levar ao limite do juridicamente possível a sua candidatura fake (com direito ao seu nome continuar constando dos questionários das pesquisas etc).
Tudo para ganhar tempo de modo a operar uma significativa transferência de votos para o ex-prefeito. Alguma transferência ocorrerá, sem sombra de dúvida, mas numa proporção imprevisível.
De sua parte, no TSE, a nova presidente daquela corte, ministra Rosa Weber, e o seu colega de Supremo Luís Roberto Barroso, encarrregado de analisar o registro da candidatura Lula e os recursos para impugná-la, agirão com celeridade para barrá-la até o fim de agosto, bem antes do prazo fatal de 17 de setembro; se a questão não estiver decidida até lá, assim esperam os advogados de Lula, não haverá mais tempo hábil para remover a foto do ex-presidente das urnas eletrônicas (depois do TSE, recorrerão ao Supremo). Isso produziria uma insegurança jurídica e um caos político de consequências gravíssimas para a democracia brasileira.
Lula e o PT sabem que a maior vitória hoje ao seu alcance consiste em manter partido e militância unidos, a fim de assegurar-se um papel relevante no quadro político que emergirá das eleições de outubro, seja ele qual for.
Nesta nossa conversa, você já ‘dissecou’ uma grande massa de números, estatísticas, indicadores etc, mas sabemos que a política, de maneira geral, e as eleições, em especial, são arenas psicológicas, onde as emoções jogam um papel tão ou mais importante que a razão . . .
– Concordo totalmente. E acrescento, relembrando o que eu disse logo no começo deste papo: o eleitorado está em estado de choque com todos os desmandos e roubalheiras de dinheiro público que têm sido revelados pelas operações anticorrupção; está entre revoltado e desalentado com a contratação da sua renda, pra não falar do desemprego; também está apavorado com a escalada da insegurança, da criminalidade da violência.
Dia desses, o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançaram o “Atlas da Violência-2018”, com dados relativos 2016. Naquele ano, o Brasil bateu o triste recorde de 62.517 homicídios, e na última década 513 mil pessoas morreram vítimas de violência intencional no país! Como isso tudo vai se traduzir em termos de voto é algo impossível de se prever com precisão ‘científica’. Ao que parece, pelo menos até agora, o Bolsonaro é o presidenciável que melhor aproveitou essa ‘onda’, esse sentimento difuso, esse clima de opinião e de insegurança. Mas note que nem ele nem o Lula ganham do não voto.
Como não existe não voto ‘a favor’, a gente pode estimar que o vencedor, ou vencedora, do pleito presidencial será quem conseguir atrair a maior parcela desses eleitores desiludidos e indecisos.
A campanha na televisão vai influenciar o resultado? Vai. A militância digital vai influenciar? Também vai. Já deveríamos estar acostumados a flutuações drásticas na corrida presidencial: em 2014, a duas semanas do primeiro turno, as sondagens de opinião sugeriam fortemente que a Marina Silva estava com um pé no segundo…. Um tênue prognóstico que se frustrou logo de antemão — e nós já discutimos isto aqui — é que a tal ‘renovação’ que se poderia esperar de um ‘climão’ indignado como o atual não vai ser tão dramática assim.
Outra expectativa que desde já não vingou foi a da irresistível ascensão de um outsider, candidato estranho ao ‘sistema’, pronto para capitalizar o repúdio universal à classe política. Pelo caminho ficaram os projetos presidenciais do empresário-entertainer Luciano Huck e do jurista e ex-ministro do STF Joaquim Barbosa.
E como na política — já ensinava Maquiavel — o “parecer” é mais importante que o “ser”, o anseio pela novidade, pelo outsider, pelo antipolítico, até agora está sendo capitalizado por um ex-capitão para-quedista já no seu sétimo mandato de deputado federal….
Outro número que costumava funcionar como preditor mais ou menos seguro do resultado de uma eleição para o Executivo — o grau de rejeição acima de 50% — mostra-se agora de pouca utilidade; isso porque TODOS os presidenciáveis competitivos são fortemente rejeitados: Bolsonaro (65%), Alckmin (62%), Lula, Ciro e Marina (60%), Haddad (57%). Mais uma vez, refiro-me ao DataPoder360 de julho último.
Pelo menos, você poderia apontar aqueles ‘imponderáveis’ aos quais jornalistas, analistas políticos e o público em geral deveriam ficar atentos?
– (Risos). Xiii!… A lista é bem longa, mas vamos aos principais. Primeiramente, quanto do seu universo de votos, sobretudo no Nordeste, Lula será capaz de transferir ao Haddad? (A estatística aplicada às eleições mostra que essa transferência de padrinho pra afilhado raramente supera o ‘teto’ de 65%.)
Em segundo lugar, até que ponto vai ‘colar’ com o eleitorado a promessa do Ciro de “limpar” os nomes dos 63,4 milhões de inadimplentes hoje negativados no SPC/Serasa? (O comentariado político tende a levar esse tipo de proposta na gozação, mas o meu amigo e ‘guru’ Paulo Guimarães, professor titular de Estatística, aposentado, da Unicamp, com mais de 30 anos de experiência em campanhas, explica que as propostas com maior potencial impulsionador do voto são aquelas que prometem melhorar uma situação que até pouco tempo antes era boa e rapidamente piorou — mais do que as que prometem melhorar um quadro tão cronicamente ruim que o eleitor já desesperou da capacidade de qualquer candidato para resolver o problema, a exemplo da violência criminal no Rio.)
Em terceiro lugar, será que o Alckmin poderia ser ‘ajudado’ pela sua companheira de chapa, a senadora do PP gaúcho, Ana Amélia, a tirar do Bolsonaro votos até agora ‘seguros’ no agronegócio, no Sul e à direita do espectro ideológico? Outra para o Alckmin: até que ponto sua candidatura, respaldada pelos partidos que sempre participam na base parlamentar de qualquer governo — inclusive no atual governo, o mais rejeitado de toda a história —, poderia se beneficiar de uma ligeira melhora na competitividade e na ‘visibilidade’ do candidato Meirelles?
Explico: se o Meirelles continuar patinando em números tão baixos de intenções de voto, caberá ao tucano o incômodo papel de bola-da-vez, de ‘mico’, do sentimento anti-Temer.
Em quarto e último, uma questão tremendamente decisiva: Bolsonaro, que há muito tempo já quase monopoliza o sentimento anti-Lula, anti-PT e antiesquerda, será capaz de se projetar, também, como o grande anti-Temer? Se não o Bolsonaro, quem? O professor Paulo Guimarães afirma que o candidato que conseguir isso, vai vencer esta eleição.
Na minha percepção, o Bolsonaro pode até não ganhar, pode até nem chegar ao segundo turno (cenário que, hoje, considero improvável), mas estou certo de uma coisa: a balança da opinião pública, nos últimos anos, passou a pender para a direita. Isso pode ser comprovado, por exemplo, no fenômeno da desidratação do Fora, Temer! nas redes sociais.
Hoje, pra cada cibernauta que surge defendendo valores e propostas de esquerda, logo surgem quatro ou mais, de direita, para desmenti-lo e, quase sempre, escrachá-lo.
No ano passado, quando o que eu chamo de intentona Janot-Joesley parecia desencadear uma irresistível ‘onda’ para afastar Temer, essa militância eletrōnica de direita, temendo que o Fora, Temer! pudesse trazer Lula e o PT de volta ao poder, reagiu vigorosamente para frustrar tal possibilidade. (A habilidade do presidente para comprar sua salvação na Câmara dos Deputados, Casa que já presidiu por três vezes, fez o resto.)
É por isso, também, que eu discordo quando ouço colegas, comentaristas, colunistas dizerem que o Brasil está “rachado ao meio”. Dividido, sim; polarizado, sem dúvida, mas partido ao meio, não, porque, hoje em dia, direita e centro-direita são mais influentes que a esquerda.
E nem tanto em termos de liberalismo econômico, pois o brasileiro em geral ainda ama o Estado de paixão etc. Falo em termos de valores conservadores. (Você pode apostar que essa preferência nacional pelo Estado-papai, ou mamãe, herança duradoura do patrimonialismo burocrático, com profundo vinco aristocrático, preencheria o espaço de outras duas, três ou mais entrevistas nossas!…)
Afinal, dá pra prever alguma coisa? O quê?
– Aquilo que é possível prever, porque vai continuar mais ou menos como tem sido, infelizmente, é a permanência do chamado presidencialismo de coalizão (ou cooptação). Desde a reconstitucionalização do país, nenhum presidente — nem FHC- I, com o Plano Real, eliminador do dragão hiperinflacionário; nem Lula-I, o Lulinha Paz & amor; Amor, que fez “a esperança vencer o medo” — obteve para o seu partido (PSDB ou PT) mais de 20% das cadeiras da Câmara.
No parlamentarismo clássico, a maioria legislativa forma o governo. No presidencialismo à brasileira, é o governo que precisa construir a maioria no Congresso, utilizando como ‘argumentos’ emendas orçamentárias, distribuição de cargos aos afilhados dos parlamentares da ‘base’ e, como vimos no Mensalão e no Petrolão, dinheiro vivo.
O sistema político, pelo menos a curto prazo, seguirá fragmentado. Atualmente, são 25 partidos na Câmara e 18 no Senado. A gente poderia até pensar — e com sólida fundamentação nos fatos — que esse presidencialismo disfuncional já tenha chegado ao seu derradeiro limite fiscal, moral e político; ou seja, as condições objetivas para superá-lo estão dadas, estão aí, plantando bananeira à vista de todos nós.
O problema é que a sua efetiva superação exige condições subjetivas indispensáveis, como a vontade dos governados e, sobretudo, liderança dos governantes, tradutores dessa vontade. Duas mercadorias dolorosamente em falta no mercado político….
Nutro moderada esperança em duas inovações recentes para atenuar essa pulverização ingovernável: a primeira — cláusula de desempenho, ou de barreira — começa a vigorar já na eleição deste ano, elevando progressivamente o mínimo de votos válidos obtidos pelos partidos em pelo menos um terço das unidades da federação para que a legenda tenha direito a eleger e empossar deputados e partilhar do fundo partidário e do horário gratuito de rádio e TV.
Assim, a partir da eleição de 2018, só terão direito a esses preciosos recursos políticos, aqueles partidos que elegerem, pelo menos, nove deputados federais (ou 1,5% dos votos válidos para a Câmara); esses votos deverão vir de, pelo menos, nove estados, com 1% dos votos válidos em cada um.
A cláusula de desempenho tem aplicação progressiva, e, até a eleição de 2030, serão exigidos 3% dos votos válidos para a Câmara dos deputados, distribuídos em nove estados, com mínimo de 2% dos sufrágios válidos em cada um deles. Pessoalmente, eu preferiria a barreira em vigor na Alemanha desde 1949 (5%), mas já é alguma coisa e vai reduzir o número de partidos no Congresso, nas assembleias legislativas e nas câmaras municipais.
A segunda inovação, começará a vigorar da eleição municipal de 2020 em diante: a proibição de coligações proporcionais para vereador, deputado federal e deputado estadual. Mais uma vez: não é nenhuma maravilha, mas também ajudará a reduzir essa absurda quantidade de partidos e candidatos a cargos proporcionais.
Para terminar, quais os maiores desafios que o próximo, ou a próxima, presidente terá que enfrentar?
– Serão, a meu ver, três ordens de complexos desafios, em meio a um clima geral de opinião pública caracterizado pelo rechaço à classe política (partidos, parlamento), por uma longa e profunda recessão (desemprego), por extrema incredulidade quanto à capacidade das autoridades para controlar a escalada da insegurança, do crime.
A primeira ordem desses desafios é econômica, mais precisamente fiscal, as contas públicas: como reverter o perfil da dívida pública, que, em breve, deverá atingir 87,3%, o que exigirá reformas fiscais impopulares, a começar pela da previdência. Só pela via reformista, o Brasil vai poder reconquistar a confiança dos investidores, daqui e de fora, de modo a abrir caminho para uma retomada econômica em bases sustentáveis.
Com uma carga tributária que chega ao dobro daquela vigente em outros países emergentes, não dá mais para fazer a ‘mágica besta’ do ajuste aumentando imposto.
O segundo grande desafio consistirá em mobilizar apoio político a essa agenda reformista de um Congresso que continuará muito fragmentado, partidariamente pulverizado, sensível ao lobby de corporações burocráticas influentes e poderosas na defesa dos seus privilégios. (Quero lembrar que numa série de recentes reportagens sobre “Os Donos do Congresso”, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que 25% dos deputados federais — 132 — representam o funcionalismo público.)
Por último, mas não em último, o elevado potencial de conflito e instabilidade jurídica presente em um sistema de Justiça e de Controle empoderado por recente geração de leis anticorrupção (em especial a de número 12.846/2013) e pela acentuada deterioração do prestígio e da legitimidade social da classe política: Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Federal, o TCU, a Advocacia-Geral da União e a Controladoria-Geral da União (CGU).
Por favor, explique melhor esse terceiro desafio.
– Um aspecto que me parece muito sério é a fragmentação interna desse sistema de Justiça. Tomemos, por exemplo, o baixo grau de colegialidade do processo decisório judicial, começando pelo topo do sistema, o STF: no ano passado, 90% das 113.600 decisões do Supremo foram tomadas individualmente pelos 11 ministros, sob a forma de liminares, como aquela do ministro Ricardo Lewandowski suspendendo a venda de participações da União em refinarias da Petrobras localizá-las nas Regiões Sul e Nordeste.
Outro aspecto que me preocupa são os choques políticos, ideológicos e até mesmo geracionais entre diferentes instâncias judiciais ou esferas do sistema de Justiça: tribunais regionais federais contra tribunais superiores; Poder Judiciário versus Ministério Público versus Polícia Federal versus órgãos de controle (os desentendimentos acerca dos acordos de leniência com empresas que participaram de episódios de corrupção revelados pela Lava Jato ilustram bem esse ponto).
Enquanto a Justiça Federal, com merecido destaque para o juiz Sérgio Moro, em Curitiba, já condenou 134 pessoas com penas de prisão que somam 1983 dias, quatro meses e 20 dias, o único parlamentar em exercício de mandato, deputado Nelson Meurer (PP/PR), condenado pelo STF a 13 anos, em regime fechado, por participação no escândalo do Petrolão, continua batendo ponto diariamente na Câmara e ‘recorrendo’ em liberdade.
A Constituição Política do Império do Brasil (1824), em sua ‘sabedoria sociológica’, estabeleceu o Poder Moderador — privativo do imperador, sempre ouvidas, mas não obrigatoriamente acatadas, as sugestões do vitalício Conselho de Estado —, com a missão de arbitrar os conflitos entre os demais poderes e, assim, evitar paralisias decisórias prejudiciais ao sistema. O fato de a República ter riscado o Poder Moderador do texto constitucional não suprimiu, na prática, a sua periódica necessidade; daí as frequentes intervenções militares, um poder moderador fardado, ao longo do século passado, para cortar, a fio de espada, o nó dos impasses do poder civil.
Hoje em dia, surgem novos candidatos a esse poder ‘informal’: juízes, procuradores, enfim, segmentos do sistema de Justiça e Controle. E por quê? Porque, infelizmente, na nossa cultura política patrimonialista, permanece forte a tendência ao exercício imoderado do poder, em outras palavras, as pessoas ‘físicas’ das autoridades públicas costumam considerar-se ‘maiores’ e mais importantes que as posições que ocupam.
O saudoso deputado e vice-presidente Pedro Aleixo, da UDN mineira, confessava que, sob o draconiano Ato Institucional nº 5/1968 (AI-5), o que ele mais temia não era o arbítrio do presidente da República, mas o abuso de autoridade do guarda da esquina…. Enfim, a tentação de ultrapassar limites formais a todos os poderes constituídos, em benefício próprio e em benefício do clã familiar, corporativo e político, é enorme.
E dela não escapam nem mesmo os novos candidatos a poder moderador…. Daí a permanente atualidade da questão: quem nos protege dos nossos protetores? Uma pergunta que mereceria meditação cuidadosa e madura durante esta quadra eleitoral — e, claro, depois dela, também.