Resenha de minha autoria novo livro de Pedro Malan:
Uma certa ideia de Brasil: entre
passado e futuro, 2003-2018 é o título do livro que o economista Pedro Malan,
PhD pela Universidade da Califórnia/Berkeley, acaba de lançar pela editora
Intrínseca. Nele, o professor do Departamento de Economia da PUC-Rio — onde se
graduou em Engenharia —; ex-pesquisador do Ipea, ex-negociador da dívida
externa brasileira (1991-1993); ex-presidente do Banco Central (1993-1994); e
ministro da Fazenda ao longo dos dois mandatos presidenciais de Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998, 1999-2002: o primeiro marcado pela vitória sobre a
hiperinflação, graças ao êxito do Plano Real, e o segundo, pela
institucionalização do “tripé” metas inflacionárias/câmbio
flutuante/responsabilidade fiscal), reúne 136 artigos originalmente publicados
em O Estado de S. Paulo. Um amplo panorama econômico e político do ciclo
lulopetista e do governo ‘de transição’ de Michael Temer.
Para o título, Malan se inspirou em
famosa frase com que o general-presidente Charles de Gaulle abriu suas memórias
e que repetia frequentemente em seus discursos (“Toda a minha vida eu tive para
mim uma certa ideia da França”) e também no título de uma coletânea da filósofa
Hannah Arendt (Entre o passado e o futuro).
Além do valioso conteúdo informativo e
analítico desse conjunto de escritos, o leitor é duplamente brindado com a
elegância estilística de Malan, que não esconde sua predileção por gênios da
literatura universal como o argentino Jorge Luís Borges e o brasileiro João
Guimarães Rosa; e também com o didático cuidado do projeto gráfico: no início
dos 16 capítulos que enfeixam artigos selecionados ano a ano, resumos dos
principais acontecimentos políticos e econômicos delineiam o pano de fundo
doméstico e externo contra o qual o autor medita e escreve.
Pessoalmente, gosto de coletâneas como
esta, pois que permitem selecionar as leituras livremente a cada momento, sem a
obrigação de seguir uma ordem rigorosamente sequenciada. Mesmo que assim não
fosse, ainda me faltariam tempo e espaço para a resenha sistemática e
’exaustiva’ que livro e autor merecem, uma lacuna que não tardará a ser
colmatada por escribas mais talentosos do que este. Assim, vou aqui me limitar
a chamar a atenção do leitor para três aspectos que me parecem centrais na
‘narrativa’ malaniana, com o intuito de incentivá-lo a partilhar, sem tardança,
desse banquete de erudição e “saber de experiência feito” (Camões), temperado
com generosas doses de espírito público e amor ao Brasil.
A escolha do meu primeiro foco é
diretamente sugerida pelo autor, logo no “Prefácio”, quando ele esclarece que
os textos giram em torno de quatro eixos temáticos, expressivos dos valores que
conformam sua “utopia” para a sociedade brasileira, a saber: primeiramente,
“[l]iberdades individuais, de opinião, de expressão, de associação, [. . .] de
imprensa, [. . .] de empreender, [ . . .] de desenvolver potencialidades como
ser humano. Direitos civis assegurados a todos”; em segundo lugar, “[m]aior
justiça social [. . .] igualdade perante a lei e menor desigualdade na
distribuição de renda e de oportunidade, o que exige intervenções onde
realmente importa” — “nos anos iniciais de formação da criança e do jovem, com
foco no seu inviolável direito à aprendizagem [. . .] nas idades certas, o que
inclui leitura, escrita e noções básicas de matemática no máximo aos 6/7 anos
de idade”; terceiro, “[a]tenção à eficiência operacional [. . .] do setor
público” — “uma sistemática avaliação dos custos e benefícios de sua miríade de
programas nos três níveis de governo. Assim também em relação à produtividade e
à competitividade internacional de empresas privadas — condições indispensáveis
para que possamos vir a ter um crescimento econômico sustentado no longo prazo;
e, por último, mas não em último, “[m]ais amplo reconhecimento de um paradoxo
fundamental [,] o que Schumpeter denominava a ‘máquina capitalista’ e seu
‘elemento essencial’ — a ‘destruição criativa’ via avanços tecnológicos e
inovações disruptivas — mostrou-se imbatível na produção de riqueza e na
disseminação de acesso a produtos de consumo de massa. Mas ela não é, por si
só, capaz de distribuir riqueza, renda e oportunidades de forma a atender aos
desejos de menor injustiça social. É preciso que uma sociedade disponha de
capital cívico, pessoas de espírito público, capacidade de cooperação e
exercício constante de cidadania para que um Estado razoavelmente eficiente
possa desenvolver políticas públicas capazes de assegurar um mínimo sentido de
maior justiça social, em uma sociedade massas que se queira mais moderna e mais
civilizada” (pp. 20-21).
Esse ideário situa Malan firmemente na
tradição do liberalismo moderno, ou social-liberalismo, que encontra luminosa
expressão brasileira nas obras de Antonio Paim, Ricardo Vélez Rodríguez e do
saudoso José Guilherme Merquior. Um liberalismo republicano que recusa a
glorificação simplória do Estado mínimo, para se dedicar à busca do Estado, a
um tempo, possível e necessário. Nas palavras do autor, “o bom combate não é
contra o Estado, é contra as formas espúrias de sua apropriação, de
aparelhamento da máquina pública e de uso indevido das instrumentalidades do
poder para benefício de partidos políticos, grupos de interesse e/ou
enriquecimento pessoal”(p. 481).
O segundo foco recai sobre o ‘arco
narrativo’ descrito pelo conjunto dos textos. Ele começa, sob os louvores do
autor, com a recepção do legado de política econômica do governo FHC por “Lula
1” (em junho de 2002, momento de forte tensão pré-eleitoral nos mercados ante a
perspectiva de que o PT no poder viesse a cumprir suas velhas promessas
descabeladas de calote nas dívidas externa e interna etc, o aconselhamento de
Malan foi decisivo para que o coordenador do plano de governo e seu sucessor na
Fazenda, Antônio Palocci, redigisse e divulgasse a “Carta ao povo brasileiro”,
compromisso público do candidato Lula da Silva com a estabilidade monetária e
fiscal). A curva se inflete criticamente com a guinada populista
pseudokeynesiana de “Lula 2”, regressão para a qual concorreram uma confiança
excessiva no boom internacional dos produtos primários, tracionado pela
expansão econômica da China; uma vertigem ufanista suscitada pela promessa de
súbita prosperidade do pré-sal; uma recaída nos velhos instintos protecionistas
e estatizantes do lulopetismo a pretexto de enfrentar a Grande Recessão mundial
iniciada em 2008; e a saída de Palocci do ministério. Na sequência, Malan
disseca a débâcle decorrente da radicalização dessa guinada sob Dilma Rousseff,
no contexto da superposição de três megacrises (econômica, política e ética),
até chegar ao ponto em que o Brasil hoje se encontra: uma tímida, sofrida
retomada do crescimento e do emprego após tombo de quase 10% a renda per capita
e mais de 13 milhões de desempregados; incerteza dos investidores diante da
explosiva trajetória do endividamento público em relação ao PIB (a caminho de
87,3%, na previsão do FMI); paralisação da agenda de reformas fiscais — a mais
relevante e urgente das quais é a da Previdência —; extrema volatilidade do
quadro político-eleitoral.
O que me traz ao terceiro e último foco
desta resenha, apontando para o futuro almejado pelo intelectual público e
cidadão Pedro Malan, futuro cuja síntese cifra-se no perfil do presidencial da
República que ele gostaria de ver tomar posse a 1º de janeiro de 2019: “O
Brasil precisa [. . .] de um candidato reformista de centro, honesto,
experiente, que não tenha ilusões — ao contrário, que conheça bem a real
situação das contas públicas do país (governo federal, estados e muitos
municípios), o drama da educação, a tragédia da corrupção e da violência
urbana. E que tenha refletido e se cercado de pessoas experientes, tecnicamente
competentes, que conheçam a máquina pública e seus corporativismos; e que sejam
capazes de vislumbrar o país no mundo, e não fechado em seu labirinto” (pp.
497-498).
Aqui, passo a palavra do autor de Uma
certa ideia de Brasil . . . para conjunto do eleitorado. Suspeito, todavia, que
o Zeitgeist deste pleito reflete muito mais a ira da população do que a “sóbria
e calma razão” (Locke) malaniana.
Em tempo — Se eu pudesse sugerir ao
leitor um ângulo de entrada para este monumento com mais de 500 páginas
(incluídos os apêndices estatísticos), diria que o tríptico de ensaios sob o
título “Pressão estrutural por gastos públicos” (pp. 462-470) funciona como uma
conveniente introdução à problemática geral de Malan, discutindo as
‘constantes’ socioeconômicas que perpassaram o quase século ao longo do qual o
Brasil se transformou na terceira maior democracia de massas do planeta (as
duas primeiras são Índia e Estados Unidos); constantes que atravessaram
impávidas e com crescente ‘tração’ nada menos que quatro ciclos políticos, dois
autoritários (1937-1945, 1964-1985) e dois democráticos (1946-1964, 1985 até o
presente). A primeira delas é de natureza demográfica: nenhum outro país além
do Brasil, nem mesmo a China ou a Índia, num período de pouco mais de meio
século — 1950 a 2017 —, verificou um aumento de sua população urbana de 9,5
vezes, de 36% para 86% do total. Mais vertiginoso que esse aumento é o declínio
da nossa taxa de crescimento populacional (da média anual de 2,8% entre as
décadas de 1950 e 1980 para 0,77% no ano passado). Dentro de 10 anos, essa taxa
será inferior a 0,4%. Até 2040, nosso crescimento demográfico atingirá o máximo
de 228 milhões de habitantes, caindo para 218 milhões em 2060. E já uma década
antes disso, a faixa de brasileiros com 60 anos ou mais será a única a crescer
em relação à população total. Os idosos, que hoje representam 12% do total de
trabalhadores, serão 30% em 2050 e 45% em 2060. Atualmente, a expectativa de
vida ao nascer do brasileiro, que era de 45 anos na década de 1940, é de 79
para mulheres e 72 para homens; para quem chega aos 65, ela cresce para 82
(homens) e 85 (mulheres). A reforma previdenciária, portanto, traduz não
somente um imperativo de justiça (o déficit do Regime Geral, dos trabalhadores
do setor privado, corresponde a R$ 6 mil por aposentado, enquanto, nos
Regimes Próprios do serviço público, o déficit vai a R$ 78 mil por aposentado),
mas também a única maneira de conjurar a ameaça do “‘futuro adiado’” em um
Brasil que terá ficado velho antes de ter se tornado rico (p. 464).
A segunda fonte estrutural de pressão
por gastos públicos analisada por Malan traduz-se nas nossas gigantescas
necessidades de ampliação e modernização de infraestrutura física (transporte
multimodal, logística, energia, comunicações, saneamento), as quais só poderão
ser solucionadas mediante a combinação de esforços entre um setor público
eficiente, transparente e orientado por marcos regulatórios estáveis e
amistosos ao mercado, de um lado, e, de outro, investimentos privados
(nacionais e estrangeiros) munidos de ferramentas financeiras inovadoras e
confiantes no retorno adequado para o capital. Em poucas palavras, orientações
exatamente inversas ao voluntarismo fanfarrão, à ausência de senso de
prioridades e ao capitalismo de compadrio que determinaram o fracasso do PAC
(Programa de Aceleração do Crescimento).
A terceira fonte corresponde à
“infraestrutura humana” (educação, saúde, segurança pública). Para atender a
essas carências, adverte Malan, será necessário nada menos do que
despatrimonializar o Estado brasileiro, redirecionando gastos que hoje
beneficiam corporações públicas e privadas com acesso privilegiado aos seus
recursos — os 20% mais ricos concentram 60% da renda total — para os 80% da
população ainda excluídos de um padrão de vida digno de nações desenvolvidas.