quinta-feira, 5 de setembro de 2019

O GOVERNO BOLSONARO E O CONGRESSO NACIONAL: FIM DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO?


Olá, pessoal! 
Este artigo será divulgado em duas versões ligeiramente diferentes nos portais e nas revistas da Abring, em Brasília, e da Câmara da Indústria e Comércio Brasil-Alemanha, em SP. 


O GOVERNO BOLSONARO E O CONGRESSO NACIONAL: FIM DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO?
Paulo Kramer ( * )


Jair Bolsonaro chegou à Presidência da República na crista de gigantesca onda de indignação popular contra um establishment político amplamente percebido como corrupto e estranho aos interesses dos cidadãos comuns, percepção reforçada pelas chocantes revelações da Operação Lava-jato. Ele interpretou e continua interpretando sua vitória nas urnas de 2018, durante eleição agudamente polarizada, como um claro mandato para abandonar o modelo de relacionamento Executivo-Legislativo conhecido como presidencialismo de coalizão, um toma-lá-dá-cá institucionalizado que se traduz na distribuição de nacos do orçamento público, cargos ministeriais aos parlamentares situacionistas e outras posições-chave nas administrações direta e indireta aos afilhados desses políticos, em troca do apoio congressual à agenda de proposições do governo. Na verdade, essa barganha constituiuse em chave da governabilidade nos dois períodos democráticos da nossa história republicana desde o fim da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945): o primeiro, de 1946 a 1964, interrompido por 21 anos de regime militar (1964-1985), e o segundo, que, começando com o governo de transição de José Sarney (1985-1990), se prolonga até hoje, a partir da reconstitucionalização do País (1988). Cabe observar que essa transação de verbas e cargos públicos em contrapartida pelo apoio legislativo à gestão do Executivo segue pautando a política na grande maioria, quase totalidade, dos estados e municípios. O presidente se sente 'empoderado' pelo sentimento de amplas parcelas da opinião pública para substituir um presidencialismo de coalizão que, com o passar do tempo, degenerou em presidencialismo de cooptação e, afinal, de pura e simples corrupção, por um apelo direto às massas a fim de que estas exerçam pressão sobre a classe política e o baronato burocrático – via redes digitais e manifestações de rua – em prol das propostas governamentais. Um formato de liderança política que o sábio alemão Max Weber (1864-1920) rotulou de "carisma democrático plebiscitário", ou "cesarismo democrático". O custo dessa opção é a imprevisibilidade: em vez de contar com uma base estável de apoio parlamentar chancelada pelos líderes dos partidos governistas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o Executivo precisa negociar esse respaldo caso a caso, com um caleidoscópio de bancadas temáticas, representativas dos grupos de interesses e correntes de opinião aliados do bolsonarismo, mas nem sempre convergentes entre si (evangélicos, agropecuaristas, operadores da segurança pública etc). O novo caminho já registra alguns acidentes de percurso. Antes do recesso parlamentar de meados de julho último, cinco das 20 medidas provisórias editadas pelo Planalto desde a posse de Bolsonaro haviam caducado por decurso de prazo. Provavelmente por isso, como sugere a leitura cuidadosa de recentes edições do Diário Oficial da União, a articulação política do governo tenha voltado a apelar, em doses homeopáticas, para a velha fórmula retribuindo a fidelidade de grupos de congressistas com nomeações para cargos em escalões inferiores, como superintendências regionais de autarquias federais. A despeito desses percalços, ao menos por enquanto, a reforma da Previdência Social (Proposta de Emenda à Constituição-PEC nº 6/2019), primeiríssimo item da agenda econômica do governo, segue seu curso no Congresso Nacional, já aprovada pela Câmara no dia 7 de agosto e prestes a receber o sinal verde também do Senado. Sua promulgação, prevista par outubro próximo, vai representar uma economia de aproximadamente R$ 900 bi para os cofres da União nos próximos 10 anos. Esse encaminhamento positivo refletirá, em grande medida o lento, mas constante, amadurecimento da sociedade brasileira quanto à urgente necessidade de um Brasil que envelhece em ritmo acelerado reformar o seu sistema de aposentadorias e pensões, quer para os trabalhadores na iniciativa privada, quer, principalmente, para os funcionários públicos, sob o risco de um iminente colapso fiscal. No primeiro turno de votação da Nova Previdência, 379 deputados votaram a favor da reforma (131 contra); no segundo turno, 370 deputados a aprovaram, e 124 a rejeitaram. E, com a finalidade de ampliar aquela economia fiscal, sem que, no entanto, seja necessário submeter, novamente, aos deputados o texto que eles já votaram, o relator da reforma no Senado, Tasso Jereissati (PSDB/CE), está apresentando uma proposta "paralela' que inclui os sistemas previdenciários dos governos estaduais e municipais, ainda que as chances de essa extensão ser aprovada pela Câmara pareçam bem limitadas. Tanto a reforma da Previdência quanto a reforma tributária, que já começou a tramitar nas duas Casas do Congresso, são condições que a equipe econômica do governo, comandada pelo ministro Paulo Guedes, julga absolutamente indispensáveis a assegurar os investidores da seriedade de sua estratégia pró-mercado no resgate da economia brasileira da mais profunda e prolongada crise de sua história. Indispensáveis, mas insuficientes, pois necessitam ser complementadas por um conjunto de reformas microeconômicas que coloquem o País, de uma vez por todas, na rota do desenvolvimento sustentado e inclusivo. Por exemplo: alterações no arcabouço regulatório que garantam segurança jurídica para investimentos privados com longo prazo de maturação são essenciais para o pleno êxito do Programa de Parcerias de Investimentos. O PPI já conta com 106 grandes projetos de infraestrutura em carteira (ferrovias, rodovias, hidrovias, leilões de campos de petróleo e gás etc), e a expectativa é que essas concessões e privatizações atraiam capitais privados da ordem de até R$ 1,6 trilhão em uma década. O panorama internacional também inspira preocupação. O agravamento da situação fiscal e cambial da Argentina, quarto maior destino das exportações brasileiras, atrás de China, Estados Unidos e União Europeia, foi o principal fator da queda de 1,6% das exportações brasileiras no segundo trimestre do corrente ano, em comparação com o primeiro. E o risco de uma recessão global em consequência da escalada de retaliações comerciais entre norte-americanos e chineses tem aumentado. Como se isso fora pouco, o presidente brasileiro, movido por sua costumeira pugnacidade, vem de alimentar bate-boca com seu colega francês, amplificando desnecessariamente o ruído provocado pelas declarações bombásticas de um Emmanuel Macron com índices de popularidade em queda livre e ansioso pelo apoio do lobby agrícola protecionista de seu país, explorando as imagens das queimadas amazônicas como pretexto para melar os trâmites do acordo comercial entre o Mercosul e a UE, sem dúvida um gol de placa da política externa do governo Bolsonaro. Seja como for, querelas envolvendo o meio ambiente mobilizam sensibilidades políticas e culturais cada vez mais fortes em países importadores de commodities, especialmente na Europa, o que pode resultar em sanções governamentais ou boicotes da sociedade civil, ambos prejudiciais ao agronegócio brasileiro. Com tanta coisa em jogo, é natural que empresários e financistas brasileiros e estrangeiros se preocupem com os possíveis efeitos desestabilizadores do aguerrido temperamento presidencial sobre o diálogo Executivo-Legislativo e os rumos da política em geral. Recentes pesquisas de opinião – Datafolha, Ibope, XP/Ipespe, CNT/MDA – apontam uma crescente desaprovação do público ao estilo de Bolsonaro governar e se comunicar. Esses números agora convergem para uma base de apoio popular dimensionada em cerca de 30% do eleitorado (bolsonaristas fieis). De outra parte, conforme dados do Atlas Político de agosto, Jair Bolsonaro ainda exibe a 'maior minoria' (42,9%) em confronto com os índices de outros vultos da atualidade nacional: Paulo Guedes (41,9%); Lula (34,0%); Fernando Haddad (26,8%); Ciro Gomes (24,7%); João Dória (18,5%) e Rodrigo Maia (12,1%). A única exceção é o ministro da Justiça e ícone da Lava-Jato, Sérgio Moro, que com 51,7% de aprovação, segundo a mesma fonte, continua sendo o agente político mais admirado do Brasil. Na minha opinião, apesar do referido desgaste, o nível de aprovação de Bolsonaro ainda o mantém em condições de se beneficiar de uma melhora da economia. Quero concluir com uma resposta tentativa, provisória, enfim, desprovida da mínima pretensão ao fechamento da questão que me motivou a escrever o presente artigo. Conquanto eu reconheça que a decisão tomada por Bolsonaro de abandonar o toma-lá-dá-cá institucionalizado do presidencialismo de coalizão e optar por alianças parlamentares ad hoc em apoio à agenda legislativa do seu governo, pode dificultar/retardar o avanço dessas propostas, observo, ao mesmo tempo, que isso não necessariamente bloqueia o caminho para as reformas, sobretudo quando a classe política percebe que sua oposição à agenda do Executivo desagrada a parcelas significativas do eleitorado e embute a ameaça de punição em pleitos vindouros. É precisamente isso que está impulsionando a reforma da Previdência: a maioria dos parlamentares considera que, se não aprová-la, será responsabilizada pelos eleitores pelo prolongamento da crise econômica. Essa conclusão encontra respaldo na literatura de Ciência Política que analisa o fenômeno dos "governos de minoria", situação de quase um terço dos gabinetes formados nas democracias europeias do pós Segunda Guerra Mundial. (Veja-se, por exemplo, a obra capital do politólogo norueguês Kaare Strom, professor da Universidade da Califórnia, San Diego, Minority government and majority rule, Cambridge University Press, 1990; ou, também, a coletânea organizada por Strom e Wolfgang C. Müller, Policy, office, or votes? How political parties in Western Europe make hard decisions, Cambridge, 1999. )
__________________________________________________________________________________ ( * ) Professor aposentado de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), hoje atuando na capital federal como consultor, analista de risco político e assessor parlamentar de empresas e entidades associativas.