Confira a íntegra da entrevista que concedi a Diego Gomes da Confederação Nacional de Transportes.
Doutor em ciência política pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), professor licenciado da UnB (Universidade de Brasília), autor de diversas publicações sobre política e comentarista do tema em programas de rádio e de televisão, Paulo Kramer não titubeia ao afirmar que o Brasil jamais viveu situação semelhante à de agora, de total indefinição e desesperança quanto ao futuro.
Exímio observador
do cenário político brasileiro, Kramer diz, que existe, hoje, a interseção de
duas crises profundas: a pior recessão econômica da história e uma crise
ético-política sem precedentes. Segundo ele, o eleitor está perplexo e raivoso,
e isso refletirá, de alguma forma, nas próximas eleições, que, além de serem as
mais imprevisíveis desde a redemocratização, definirão se o país optará por
sair da estagnação ou se agravará seu quadro socioeconômico. Confira a seguir
os principais pontos da conversa.
Estamos a pouco
menos de dois meses das, talvez, eleições mais difíceis do Brasil, mas o
cenário ainda é nebuloso. A que o senhor atribui isso?
O Brasil está
vivendo na confluência de dois eventos muito graves. De um lado, a pior
recessão econômica da história do país e, de outro, a exposição da sociedade a
tantas informações e dados sobre os malfeitos da classe política e dos seus
aliados nos negócios e na burocracia pública. O eleitor brasileiro está
perplexo e raivoso.
Tal cenário pode
gerar uma onda de pessoas totalmente descrentes com a classe política e, por
isso, dispostas a não comparecer às urnas?
Estamos diante de
índices exponenciais de pessoas que anularão o voto, votarão em branco ou se
absterão. Na prática, o brasileiro já decretou o voto facultativo. As multas
são de valor irrisório. As recentes eleições, fora de época, em Tocantins e no
Amazonas, mostram o crescimento desse não voto, com 50% ou mais de eleitores
nesse contexto. Pela série histórica do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o
não voto foi de 25,6%, em 2006; de 26,76%, em 2010; e de quase 30%, nas últimas
eleições presidenciais (2014). Isso mostra que esse é um fenômeno crescente e
atesta essa alienação, esse estranhamento, do eleitorado em relação à classe
política e, diria até mais, às instituições políticas e à própria política em
si.
Como o senhor
avalia esse processo de “criminalização” da política?
Isso é muito ruim,
já que o ser humano, há muito tempo, inventou a política como alternativa civilizatória,
ou seja, em vez de as pessoas se matarem, elas tentam resolver pacificamente os
seus conflitos de interesse. Ocorre que nosso sistema político sofre de um
descompasso muito grande entre ele (seus usos, costumes, regras e atores), a
sociedade e a economia, que mudaram muito rapidamente. O Brasil da década de
1950 para cá promoveu uma revolução urbana, com mais de 80% da população
vivendo nas cidades. A sociedade mudou muito – e muito rápido –, e os políticos
continuaram com velhos hábitos, velhos costumes. Agora, esse descompasso cobra
o seu preço.
Nesse sentido, como
o senhor enxerga atualmente a democracia representativa no Brasil?
Estamos perante uma
nova sociedade que, hoje, conhece e opera poderosos canais de informação e de
formação de opinião, que não existiam há pouco tempo. Isso, sem dúvida, impacta
a política. Os políticos, de maneira geral, mesmo quando optam por novas formas
de linguagem, o fazem conservando os velhos conteúdos formalistas.
E como aproximar a
classe política da sociedade?
O que estão
faltando são líderes políticos e cívicos com credibilidade, que sejam
influenciadores e ajudem no processo fundamental para a democracia funcionar,
que é a formação do cidadão democrático. Ou seja, é necessário haver uma pessoa
que procura se informar acerca da tomada das decisões das políticas públicas e
das leis que impactam a sua vida. Isso é importante para que esse indivíduo não
seja apenas um objeto passivo das decisões, mas, sim, um coparticipante e
sujeito da sua própria história.
A partir desse
cenário, qual é o prognóstico para o período eleitoral que se avizinha?
Impulsionado por
dois vetores poderosos – a indignação ética e o desalento econômico –, o debate
político nos últimos anos tendeu a uma polarização muito grande, com membros de
família se desentendendo, amigos se estranhando. O impeachment foi o ponto alto
dessa polarização. Isso gerou um cenário em que, nessas eleições, algumas
regras de ouro do jogo político não valerão, como a história de que, se um
candidato é muito rejeitado, com mais de 50% de rejeição, ele não conseguirá se
eleger no segundo turno. Ocorre, porém, que essa alta rejeição, hoje, é
generalizada. Então, haverá uma disputa entre dois candidatos altamente
rejeitados, sejam eles quem forem.
Diante disso, qual
conselho o senhor oferece para o empresário brasileiro, em especial o do setor
de transporte, fortemente impactado pela recessão econômica? Como investir na
atual conjuntura e contribuir para o desenvolvimento do país?
Os empresários, a
princípio, precisam lembrar que o Brasil, tal como conhecemos, existe desde
1500, e que as pessoas não deixarão de consumir bens necessários à sua
sobrevivência e ao seu bem-estar – e esses bens precisam ser transportados. Em
contrapartida, seria muito bom para o setor e para o país se os empresários
resolvessem participar mais ativamente do processo de formação de opinião e de
formulação das políticas, sobretudo as setoriais. Seria essencial um pacto
empresarial pela ética na política, em defesa das instituições, contra a corrupção
e voltado para o reconhecimento das grandes carências que o país tem em matéria
de segurança pública, educação e saúde e, de alguma forma, a fim de contribuir
com ideias e apresentar soluções viáveis para os problemas do país.
E quais os meios para viabilizar
essa participação?
Em
alguns casos, dar força aos think tanks, institutos de estudos independentes,
em que especialistas de diversas áreas (economia, ciências sociais,
antropologia, gestão pública) sejam chamados para formular essas alternativas
de políticas públicas. Já estamos percebendo essa preocupação em algumas
confederações e associações comerciais. Isso daria mais legitimidade ao lobby
empresarial, que eu considero legítimo, quando esse se propõe a trabalhar com
apenas duas moedas: informação e comunicação. O lobby empresarial desempenha
função muito importante quando aporta opiniões, pareceres e dados que impeçam
políticos e burocratas de fazer besteira, porque “quem não ouve ninguém erra
sozinho”, diz o velho ditado. Eu acredito que esse lobby tem papel importante
para o aperfeiçoamento das políticas públicas. Os legisladores tendem a ser
generalistas, não são especialistas em nada. Os burocratas, por mais
bem-intencionados e especializados que sejam, também não sabem de tudo. Eles
estão aqui em Brasília, e não na ponta.
O governo brasileiro vem encampando
(ou pelo menos tentando) uma agenda refor mista a fim de melhorar o ambiente de
negócios e garantir mais segurança jurídica. O próximo governo deve seguir por
esse mesmo caminho?
Atualmente, vemos o esgotamento de dois
modelos: o oligárquico populista dos últimos governos e o do presidencialismo
de coalizão, que eu prefiro chamar de cooptação. Esses dois modelos chegaram
aos seus limites éticos, políticos e, sobretudo, fiscais e financeiros. Não há
mais dinheiro. As condições objetivas estão dizendo aos governantes, de agora e
do futuro, o seguinte: é preciso fazer reformas fiscais, mexer não apenas na
arrecadação, mas, também, no gasto público. O Brasil precisa redefinir suas
prioridades. Os recursos são escassos, especialmente em momentos de crise. Mas
é aí em que entram as condições subjetivas. Elas podem se resumir à palavra
“liderança”. Precisamos de lideranças políticas com credibilidade e crismadas
pelo voto popular. Elas poderão promover as tão esperadas e inadiáveis reformas
estruturais.
Por que essa figura da liderança é
tão essencial?
Se
tivéssemos liderança, já teríamos aposentado o presidencialismo de coalização e
impulsionado com mais vigor e melhores resultados a reforma da Previdência.
Além disso, teríamos introduzido uma reforma política, com a instituição do
parlamentarismo com voto distrital. Toda vez em que essa pauta é aventada no
debate político, são recebidas reações muito desconfiadas e até hostis.
Enquanto tivermos o presidencialismo de coalização, continuaremos com a mesma
classe política e burocracia defeituosa. O parlamentarismo é o regime do “toma
que o filho é teu”. A proposta vai para o Congresso, que, ao contrário do que
ocorre hoje, fica sem o álibi de se esconder atrás do presidente da República.
Isso vai obrigar, de uma maneira ou de outra, que as lideranças surjam — nem
que seja na marra — para resolver os problemas e formular os programas de governo
viáveis que tenham aceitação tanto popular, quanto parlamentar.
E o que o brasileiro pode fazer
para mudar essa realidade?
Eu
diria ao brasileiro que ele tem de votar nas próximas eleições, porque essas
serão as mais decisivas das últimas décadas. O não voto, em um contexto de
finanças eleitorais concentradas como estão agora, nas mãos dos caciques
partidários, das direções nacionais dos partidos, produz o oposto da esperada
renovação. Se quisermos renovação, precisamos votar com consciência.
E por que o senhor considera o próximo período
eleitoral tão decisivo?
Os
próximos anos dependem da seguinte escolha: decidir entre a saída das crises
ético-política e econômica e a estagnação. Sabemos que o dinheiro acabou e é
necessário fazer reformas fiscais duras, impopulares, mas urgentes, sobretudo a
reforma da Previdência. É preciso mexer no gasto público já que a legitimidade
social para aumento de impostos acabou. Nós temos uma das maiores cargas
tributárias do mundo, especialmente se compararmos o Brasil com países de peso
econômico análogo — os chamados emergentes. A (carga tributária) brasileira ou
se equipara ou ultrapassa a média dos países-membros da OCDE (Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que são os mais ricos. Isso tem consequências
muito graves. Além da insegurança jurídica, contribui para a baixa
competitividade da economia e da capacidade de atração de investimentos.
O senhor poderia citar quais são os
três principais desafios para o próximo presidente do Brasil?
O
primeiro é justamente interromper a trajetória ascendente da dívida pública por
meio de reformas impopulares. É importante lembrar que, no começo do governo
Dilma, essa relação dívida-pública/ PIB (Produto Interno Bruto) já tinha
ultrapassado 70%. Essa mesma relação deve fechar o ano com 87,3% do PIB. Em
segundo lugar, é preciso ter habilidade para negociar com o Congresso, que
continuará repudiado pela população e intensamente fragmentado do ponto de
vista partidário. Então, ter capacidade de dialogar e ficar surdo de tanto
ouvir, sem abrir mão da firmeza jamais. O terceiro desafio é lidar com a
situação de instabilidade jurídica que encontramos dentro e fora do sistema de
Justiça de controle. O que temos hoje? A classe política está cada vez mais
ilegítima aos olhos da população, e isso empodera — ou dá uma ilusão de poder —
aos agentes não eleitos do Poder Judiciário, do Ministério Público e do sistema
de controle. Então, a relevância deles para o jogo político continuará cada vez
maior. Por isso, será imprescindível que o novo presidente, além de saber
negociar com o Congresso, seja capaz de dialogar com essas instituições e com
seus representantes.