quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Futuro imprevisível: cientista político fala sobre cenário político e eleitoral


Confira a íntegra da entrevista que concedi a Diego Gomes da Confederação Nacional de Transportes.


Doutor em ciência política pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), professor licenciado da UnB (Universidade de Brasília), autor de diversas publicações sobre política e comentarista do tema em programas de rádio e de televisão, Paulo Kramer não titubeia ao afirmar que o Brasil jamais viveu situação semelhante à de agora, de total indefinição e desesperança quanto ao futuro.



Exímio observador do cenário político brasileiro, Kramer diz, que existe, hoje, a interseção de duas crises profundas: a pior recessão econômica da história e uma crise ético-política sem precedentes. Segundo ele, o eleitor está perplexo e raivoso, e isso refletirá, de alguma forma, nas próximas eleições, que, além de serem as mais imprevisíveis desde a redemocratização, definirão se o país optará por sair da estagnação ou se agravará seu quadro socioeconômico. Confira a seguir os principais pontos da conversa.

Estamos a pouco menos de dois meses das, talvez, eleições mais difíceis do Brasil, mas o cenário ainda é nebuloso. A que o senhor atribui isso? 
O Brasil está vivendo na confluência de dois eventos muito graves. De um lado, a pior recessão econômica da história do país e, de outro, a exposição da sociedade a tantas informações e dados sobre os malfeitos da classe política e dos seus aliados nos negócios e na burocracia pública. O eleitor brasileiro está perplexo e raivoso.

Tal cenário pode gerar uma onda de pessoas totalmente descrentes com a classe política e, por isso, dispostas a não comparecer às urnas?
Estamos diante de índices exponenciais de pessoas que anularão o voto, votarão em branco ou se absterão. Na prática, o brasileiro já decretou o voto facultativo. As multas são de valor irrisório. As recentes eleições, fora de época, em Tocantins e no Amazonas, mostram o crescimento desse não voto, com 50% ou mais de eleitores nesse contexto. Pela série histórica do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), o não voto foi de 25,6%, em 2006; de 26,76%, em 2010; e de quase 30%, nas últimas eleições presidenciais (2014). Isso mostra que esse é um fenômeno crescente e atesta essa alienação, esse estranhamento, do eleitorado em relação à classe política e, diria até mais, às instituições políticas e à própria política em si. 

Como o senhor avalia esse processo de “criminalização” da política?
Isso é muito ruim, já que o ser humano, há muito tempo, inventou a política como alternativa civilizatória, ou seja, em vez de as pessoas se matarem, elas tentam resolver pacificamente os seus conflitos de interesse. Ocorre que nosso sistema político sofre de um descompasso muito grande entre ele (seus usos, costumes, regras e atores), a sociedade e a economia, que mudaram muito rapidamente. O Brasil da década de 1950 para cá promoveu uma revolução urbana, com mais de 80% da população vivendo nas cidades. A sociedade mudou muito – e muito rápido –, e os políticos continuaram com velhos hábitos, velhos costumes. Agora, esse descompasso cobra o seu preço.

Nesse sentido, como o senhor enxerga atualmente a democracia representativa no Brasil?
Estamos perante uma nova sociedade que, hoje, conhece e opera poderosos canais de informação e de formação de opinião, que não existiam há pouco tempo. Isso, sem dúvida, impacta a política. Os políticos, de maneira geral, mesmo quando optam por novas formas de linguagem, o fazem conservando os velhos conteúdos formalistas. 

E como aproximar a classe política da sociedade?
O que estão faltando são líderes políticos e cívicos com credibilidade, que sejam influenciadores e ajudem no processo fundamental para a democracia funcionar, que é a formação do cidadão democrático. Ou seja, é necessário haver uma pessoa que procura se informar acerca da tomada das decisões das políticas públicas e das leis que impactam a sua vida. Isso é importante para que esse indivíduo não seja apenas um objeto passivo das decisões, mas, sim, um coparticipante e sujeito da sua própria história.

A partir desse cenário, qual é o prognóstico para o período eleitoral que se avizinha?
Impulsionado por dois vetores poderosos – a indignação ética e o desalento econômico –, o debate político nos últimos anos tendeu a uma polarização muito grande, com membros de família se desentendendo, amigos se estranhando. O impeachment foi o ponto alto dessa polarização. Isso gerou um cenário em que, nessas eleições, algumas regras de ouro do jogo político não valerão, como a história de que, se um candidato é muito rejeitado, com mais de 50% de rejeição, ele não conseguirá se eleger no segundo turno. Ocorre, porém, que essa alta rejeição, hoje, é generalizada. Então, haverá uma disputa entre dois candidatos altamente rejeitados, sejam eles quem forem. 

Diante disso, qual conselho o senhor oferece para o empresário brasileiro, em especial o do setor de transporte, fortemente impactado pela recessão econômica? Como investir na atual conjuntura e contribuir para o desenvolvimento do país?
Os empresários, a princípio, precisam lembrar que o Brasil, tal como conhecemos, existe desde 1500, e que as pessoas não deixarão de consumir bens necessários à sua sobrevivência e ao seu bem-estar – e esses bens precisam ser transportados. Em contrapartida, seria muito bom para o setor e para o país se os empresários resolvessem participar mais ativamente do processo de formação de opinião e de formulação das políticas, sobretudo as setoriais. Seria essencial um pacto empresarial pela ética na política, em defesa das instituições, contra a corrupção e voltado para o reconhecimento das grandes carências que o país tem em matéria de segurança pública, educação e saúde e, de alguma forma, a fim de contribuir com ideias e apresentar soluções viáveis para os problemas do país.


E quais os meios para viabilizar essa participação?
Em alguns casos, dar força aos think tanks, institutos de estudos independentes, em que especialistas de diversas áreas (economia, ciências sociais, antropologia, gestão pública) sejam chamados para formular essas alternativas de políticas públicas. Já estamos percebendo essa preocupação em algumas confederações e associações comerciais. Isso daria mais legitimidade ao lobby empresarial, que eu considero legítimo, quando esse se propõe a trabalhar com apenas duas moedas: informação e comunicação. O lobby empresarial desempenha função muito importante quando aporta opiniões, pareceres e dados que impeçam políticos e burocratas de fazer besteira, porque “quem não ouve ninguém erra sozinho”, diz o velho ditado. Eu acredito que esse lobby tem papel importante para o aperfeiçoamento das políticas públicas. Os legisladores tendem a ser generalistas, não são especialistas em nada. Os burocratas, por mais bem-intencionados e especializados que sejam, também não sabem de tudo. Eles estão aqui em Brasília, e não na ponta.

O governo brasileiro vem encampando (ou pelo menos tentando) uma agenda refor mista a fim de melhorar o ambiente de negócios e garantir mais segurança jurídica. O próximo governo deve seguir por esse mesmo caminho?
Atualmente, vemos o esgotamento de dois modelos: o oligárquico populista dos últimos governos e o do presidencialismo de coalizão, que eu prefiro chamar de cooptação. Esses dois modelos chegaram aos seus limites éticos, políticos e, sobretudo, fiscais e financeiros. Não há mais dinheiro. As condições objetivas estão dizendo aos governantes, de agora e do futuro, o seguinte: é preciso fazer reformas fiscais, mexer não apenas na arrecadação, mas, também, no gasto público. O Brasil precisa redefinir suas prioridades. Os recursos são escassos, especialmente em momentos de crise. Mas é aí em que entram as condições subjetivas. Elas podem se resumir à palavra “liderança”. Precisamos de lideranças políticas com credibilidade e crismadas pelo voto popular. Elas poderão promover as tão esperadas e inadiáveis reformas estruturais.

Por que essa figura da liderança é tão essencial?
Se tivéssemos liderança, já teríamos aposentado o presidencialismo de coalização e impulsionado com mais vigor e melhores resultados a reforma da Previdência. Além disso, teríamos introduzido uma reforma política, com a instituição do parlamentarismo com voto distrital. Toda vez em que essa pauta é aventada no debate político, são recebidas reações muito desconfiadas e até hostis. Enquanto tivermos o presidencialismo de coalização, continuaremos com a mesma classe política e burocracia defeituosa. O parlamentarismo é o regime do “toma que o filho é teu”. A proposta vai para o Congresso, que, ao contrário do que ocorre hoje, fica sem o álibi de se esconder atrás do presidente da República. Isso vai obrigar, de uma maneira ou de outra, que as lideranças surjam — nem que seja na marra — para resolver os problemas e formular os programas de governo viáveis que tenham aceitação tanto popular, quanto parlamentar.

E o que o brasileiro pode fazer para mudar essa realidade?
Eu diria ao brasileiro que ele tem de votar nas próximas eleições, porque essas serão as mais decisivas das últimas décadas. O não voto, em um contexto de finanças eleitorais concentradas como estão agora, nas mãos dos caciques partidários, das direções nacionais dos partidos, produz o oposto da esperada renovação. Se quisermos renovação, precisamos votar com consciência.

 E por que o senhor considera o próximo período eleitoral tão decisivo?
Os próximos anos dependem da seguinte escolha: decidir entre a saída das crises ético-política e econômica e a estagnação. Sabemos que o dinheiro acabou e é necessário fazer reformas fiscais duras, impopulares, mas urgentes, sobretudo a reforma da Previdência. É preciso mexer no gasto público já que a legitimidade social para aumento de impostos acabou. Nós temos uma das maiores cargas tributárias do mundo, especialmente se compararmos o Brasil com países de peso econômico análogo — os chamados emergentes. A (carga tributária) brasileira ou se equipara ou ultrapassa a média dos países-membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que são os mais ricos. Isso tem consequências muito graves. Além da insegurança jurídica, contribui para a baixa competitividade da economia e da capacidade de atração de investimentos.

O senhor poderia citar quais são os três principais desafios para o próximo presidente do Brasil?
O primeiro é justamente interromper a trajetória ascendente da dívida pública por meio de reformas impopulares. É importante lembrar que, no começo do governo Dilma, essa relação dívida-pública/ PIB (Produto Interno Bruto) já tinha ultrapassado 70%. Essa mesma relação deve fechar o ano com 87,3% do PIB. Em segundo lugar, é preciso ter habilidade para negociar com o Congresso, que continuará repudiado pela população e intensamente fragmentado do ponto de vista partidário. Então, ter capacidade de dialogar e ficar surdo de tanto ouvir, sem abrir mão da firmeza jamais. O terceiro desafio é lidar com a situação de instabilidade jurídica que encontramos dentro e fora do sistema de Justiça de controle. O que temos hoje? A classe política está cada vez mais ilegítima aos olhos da população, e isso empodera — ou dá uma ilusão de poder — aos agentes não eleitos do Poder Judiciário, do Ministério Público e do sistema de controle. Então, a relevância deles para o jogo político continuará cada vez maior. Por isso, será imprescindível que o novo presidente, além de saber negociar com o Congresso, seja capaz de dialogar com essas instituições e com seus representantes.